Rafael e o rosto-sorriso

 Toyoi Yuuta - tumblr do artista
Quando o vi pela primeira vez, varria uma área perto da garagem. Era um rapaz alto. O boné escondia o cabelo longo e castanho. Lhe entrego um bom dia e ele me devolve com sorrisos de olhos e boca. Todo seu rosto sorria, era tipo um rosto-sorriso. 

Intrometida, ouvi ele conversando com o colega. Eles davam risadas altas no corredor, não lembro da conversa, mas lembro do "Chuck Norris". Eu o observava descer a ladeira de bicicleta, saindo do trabalho.

Certa vez, eu e meu irmão pegamos o elevador com o moço rosto-sorriso e perguntamos seu nome. "Rafael." Ele disse. Rafael, repeti para mim mesma. 

Rafael sempre me dava bom dia. E eu sempre me certificava de ser a primeira a dizer. Ele apertava os olhos e sei que estava sorrindo simpático, pois lembro do seu rosto sem máscara. O vejo caminhar cumprimentando todos que passam por ele.

Em um outro dia, de repente, estava diferente. Rafael não usava mais as roupas cinzas, o boné que escondia os cabelos longos e nem mesmo os cabelos longos. Seu cabelo agora era curto e brilhava sob o sol. Usava uma blusa branca abotoada com um símbolo sob o peito. Não era mais zelador, mas sim, supervisor do condomínio. Rafael ainda era alto e de corpo magro, mas seu rosto-sorriso parecia ainda mais radiante.

No natal passado, minha mãe presenteou panetones e vinhos a uns amigos, sugeri Rafael também. A tarefa de entregar foi minha e do meu irmão. Ao receber, o moço rosto-sorriso agradecia e parecia muito amado, muito agradecido. Meu rosto esquentava envergonhada e feliz por sua reação. Deus abençoe, feliz natal, feliz natal!

Algumas semanas atrás, vejo Rafael caminhando com uma criança miúda segurando sua grande mão. O pai da criança seguia atrás deles, o gigante e a pequena duende. 

Ainda era cedo, quando saí para comprar pão, ontem de manhã. Seu Jaime, um dos porteiros, um senhor de cabelos grisalhos, parecia distante quando dei o bom dia de sempre. Ao voltar, percebi o pano preto na entrada do condomínio. Não havia percebido ele amarrado ali. Será que alguém morreu de covid? Pensei.

Ao fazer o mesmo trajeto pela entrada do meu bloco, noto a cartolina preta com escritos em lápis de giz branco que jazia grudada no espelho. Agora que escrevo não consigo lembrar da ordem das palavras. Não quero voltar pra ler novamente. 

Perdemos. Amigo. Descanse. Paz. Rafael. 

Volto pra falar com Seu Jaime, que me fala arrasado do falecimento. Suicídio. Foi na terça, conversei  com Jaime na quinta, estou postando isso na madrugada de sexta. Ele me fala sobre Rafael com olhos submersos, ainda não caíra a ficha. "Mas a vida tem que seguir, né?" 

Eu tentava não chorar. Seu Jaime também. Fiquei muito grata por ele ter conseguido falar.

Rafael tinha 28 anos. Gostava muito da bíblia, falava dela o tempo inteiro, disse ele. Era muito prestativo. Morava com o pai, a irmã e o irmão. 

Disse que já houveram momentos em que Rafael brincava que um dia subiria em um dos prédios do condomínio e se jogaria. 

Rafael tinha feito o teste para covid e recebido o resultado no domingo. Dera positivo. Três dias depois, seu pai não conseguira impedir que o filho subisse o telhado de casa e atingisse os fios elétricos. 

Sinto muito. Sinto muito, Rafael. Por tudo o que tinha sido antes, por tudo o que veio a ser depois que você se foi. 

A notícia se espalhou e com ela os boatos, "até o motorista do uber que pegamos tava sabendo", disse meu irmão. Afirmam que você era louco, que tinha depressão, que não aguentou saber que tinha sido infectado. "Ele vai pagar pelo pecado mortal que cometeu", ouvi. Sinto muito, muito mesmo, Rafael. 

Seu nome, seu rosto-sorriso, seu bom dia, eram as minha únicas certezas sobre você. 

Perdão a vocês que me leem por trazer algo assim, mas eu precisava muito falar. Como sempre. E eu ando tão sobrecarregada. Quem não? 

Meu pai está acamado a 8 dias com sintomas de covid, sintomas de gripe, ou qualquer outra coisa, tudo é uma interrogação. Felizmente, ele aparentou uma certa melhora ontem. Estou com um olho nele, um olho na casa que preciso arrumar a todo instante, um olho nas refeições que preciso preparar, um outro que brota defeituoso na testa, pra assistir aula online. Daqui a alguns dias, fará 1 ano que a minha vó faleceu e eu tô literalmente o pó da rabiola. 

A vida é um sopro e nós somos poeira.

Obrigada a você que chegou até aqui e continua me acompanhando. Para além de todas as tristezas que digo e exponho, meu sincero muito obrigada por gostar do que escrevo ou por sentir uma parcela de carinho por mim. Significa muito.

Rafael esteve aqui. 

     


8 comentários:

Snow ★ disse...

Quando mencionou "a vida é um sopro e nós somos poeira", me lembrei de uma música que minha tia havia publicado em seu status hoje chamada "o tempo não espera ninguém", acompanhada do mesmo dito a vida é um sopro com um emoji de coração ao lado e fiquei pensando se isso seria o que conheço como sincronicidade. Foi algo tão simples mas tão revestido de significado que eu só consigo olhar para o monitor do computador e só olhar mesmo, pois não tem nada a ser tirado ao acrescentado.

Sinceramente, desejo forças a você Nicole. Só isso mesmo. Força. Muita força mesmo menina.
E também, por mais desconcertante que possa ser eu preciso dizer o quão bem escrito está esse texto. A forma como usou as palavras deixou a leitura muito agradável, assim como despertou em mim uma habilidade de imersão bem singular no seu estado - descanse Rafael, apenas descanse, esteja aonde estiver.

Um forte abraço,
Snow

nicole e. martins disse...

Muito obrigada, Snow. Mesmo num post desconfortável você sempre vem.
Que legal que consegui te colocar nessa imersão, queria registrar algumas das imagens que tenho dele e construir dessa forma me pareceu fazer sentido pra quem vai ler. Acho que funcionou.

Obrigada novamente, vai ficar tudo bem. <3

arantxa disse...

tava lendo isso aqui e queria te dar um abraço, só. a vida às vezes (muitas vezes) é difícil, mas sempre tem alguém pra dar uma apertadinha na nossa mão.

(eu sempre penso que a sorte de existir é fazer as pessoas sorrirem, receber um sorriso de volta, esses pequenos momentos do dia-a-dia. tenho certeza de que você fez a diferença pra ele, do mesmo jeito que ele fez a diferença pra você. apesar dos pesares, ainda bem que vocês se toparam nessa vida)

fica bem!! beijos, nic <3

Cassiel disse...

Sinto muito por todos que você perdeu. É difícil demais. Achei lindo você eternizar o rosto-sorriso de Rafael aqui. Não peça perdão por trazer algo "pesado". Quem não aguenta o peso da morte, não aguenta o peso da vida.

Beijos.

nicole e. martins disse...

poxa, muito obrigada. sério. só de você ter mencionado a apertadinha na mão deu pra sentir a força. obrigada. obrigada.
muito bonito e muito verdade o que cê disse.

vai ficar tudo bem!! beijos, xis <3

nicole e. martins disse...

oi Masha! muito obrigada pelo carinho e por vir comentar. também gostei muito de registrar ele aqui, foi importante pra mim. o que diz é verdade e vou levar comigo daqui pra frente, obrigada mais uma vez.

beijos <3

Camila Faria disse...

Com o coração apertado depois de ler o seu post. Como andamos fragilizados, todos nós. Sinto muito pelo Rafael, por todos os direta e indiretamente afetados por esse momento tão terrível e tão surreal. Torcendo para que o seu pai esteja bem, que você e todos os seus estejam o melhor possível.

Não Me Mande Flores

nicole e. martins disse...

Oi Camila! Muito obrigada pelo carinho. Infelizmente está sendo um momento difícil pra muita gente mesmo. Obrigada mais uma vez por vir aqui. <3