garotas que choram

arte por @sseongryu
Havia uma senhora de cabelo castanho alto e curto, com uma silhueta de estatura baixa. Se também haviam outras como ela no ponto de ônibus não as vi, mas aquela de pés ligeiros lembrava Dona Léia, minha avó. Ela subiu os degraus do ônibus com dificuldade. Vi o carro deixando a rua. Momentos depois, não saberia precisar, a vi novamente correr apressada atrás de um outro que já alertava querer seguir. Será que antes pegou o errado? Para onde ia? Uma menina, atrás dela, apoiava a mão nas costas da mais velha. “Esses ônibus não passam mais no Indianópolis?” ouvi a senhora perguntar para o motorista.

Recentemente, o percurso e os horários mudaram. Fizeram sem avisar. Sei disso por que moro lá e também os pego todos os dias.

Caminhei na direção dela e avisei qual era o ônibus certo. Ela disse que sabia e que tinha outro que ia pro bairro – esse último não passava naquele ponto, pensei. Pela forma como falou, imaginei que não queria ajuda, então só acenei com a cabeça. Olhei para a menina que me olhava de um modo... assustado, talvez. Os olhos estavam vermelhos, por baixo dos óculos de grau, mas duvidei dos meus que também observavam suas mãos tremerem na frente da máscara.

Voltei para o meu lugar e ouço um “obrigada” vindo da senhora.

As duas seguiram para um lugar mais a frente do ponto. Estava cheio. Meus olhos ficaram atentos às duas. Eu não tinha certeza, mas a menina não parecia bem. E confirmei quando a vi conversar com a atendente de uma loja de produtos pra cabelo. Ela sentou no batente da loja e abaixou a cabeça com as mãos nos joelhos. A atendente a chamou para dentro. As pessoas ao redor observavam. A senhora observava a menina. Eu também, de longe.

O ônibus que eu precisava pegar havia chegado. Corremos em direção a ele. Ouvi a senhora chamar: “Vem, Geovana! O ônibus chegou.”

Dei passagem pra elas subirem. Subi atrás de Geovana.

A senhora explicava para o motorista que Geovana havia pego o ônibus errado, pois não passava mais pelo Indianópolis. Que a menina ficou nervosa demais e começou a chorar quando isso aconteceu.

Eu olhava pra Geovana que escondia o rosto atrás da cortina da janela, enquanto pensava em mim mesma. Contando nos dedos as incontáveis crises que vieram em momentos sem avisar, sem dar brecha pra disfarce, nem um pingo de piedade. Tudo ao mesmo tempo.

Também fiquei nervosa quando percebi que confiei no ônibus errado, a duas semanas atrás, que antes era o certo. Era, mas de repente não era mais e tudo bem. Acontece. Eu quase deixei a ansiedade tomar conta, mas Geovana... Como você se sentiu? Queria ter conversado com você, dizer que não estou te julgando enquanto vejo seus olhos marejarem e suas mãos tremerem ao lado do corpo. Queria ter dito que entendo e que nada do que está sentindo é bobagem. Mas, não disse. Não disse nada quando te vi levantar e descer do ônibus. Nem quando seus olhos, ainda assustados, encontraram os meus uma segunda vez pela janela.

Talvez nem tenha sido apenas esse incidente que a tirou do presente, talvez outros vários juntos. A gente só quer se sentir bem. Continuar respirando sem sufocar.

"Gosto da casa e gosto de pensar nela, e também naquela mulher estranha, na selvageria organizada do seu jardim, e quero saber como chegar lá, como conseguir um lugarzinho na terra, um lugarzinho para pintar por dentro e por fora, um quintal para encher e dar forma, como me sentir à vontade na atmosfera ao meu redor." 

E a vontade de falar sobre isso que aconteceu ontem, veio depois de ler, hoje de manhã, as últimas páginas de Garota em Pedaços, de Kathleen Glasgow. A autora levou nove anos pra escrever um livro que ela não queria escrever. Sobre meninas que se autodestroem, maneira que encontram pra lidar com a vida. Era um livro sobre ela mesma. 

Ultimamente tenho lido livros com personagens com transtornos mentais. Isso aconteceu depois de começar a visitar a psicoterapeuta (ainda não falei com ela sobre isso), e tem sido uma experiência interessante. De fato, algumas coisas são mais difíceis de se ler, afinal estamos em contato com uma mente que não é a nossa. Tenho aprendido e desaprendido pra aprender de novo, de outra forma. A gente não percebe o mundo igualmente, muito menos lida com ele igualmente. Isso não é bom e nem ruim, só é... diferente. E que bom. Há muito o que se aprender, estamos sempre em construção.

Isso não era pra ter conclusão nenhuma, então não vou me preocupar com o fato de que isso acabou subitamente (estou tentando). É apenas sobre: ter pensamentos pensantes (ás vezes), acontecimentos em pontos de ônibus (mais uma vez), livros que surgem nos momentos certos (como ocasionalmente), e conhecer autoras que te incentivam a não parar de escrever, ou se consolar de alguma forma, (porque você precisa aliviar as pontas afiadas). Vamos chegar ao dia seguinte.⭐

4 comentários:

Maria Catharina disse...

caramba, nic..!

Snow ★ disse...

Saber que uma autora levou nove anos para escrever um livro que não queria escrever chega a ser reconfortante para alguém que está levando quase um ano para terminar um oneshot que ela não queria realmente terminar e honestamente, seus textos estão cada vez melhores Nicole. Fica fácil criar o cenário com o jeito que você escreve e até mesmo algo que deveria ser desconfortável acaba ganhando o valor oposto com o carinho que você coloca nas palavras, realmente.

nicole e. martins disse...

acho que sim, Maria!

nicole e. martins disse...

acho que existem coisas que a gente precisa muito colocar no mundo, não importa quanto tempo demore. é boa a sensação de dever cumprido, né? poxa, muito obrigada Snow, fico feliz em saber que tô evoluindo de alguma forma!! muito obrigada mesmo aaa <3