reprise

em passos rápidos, o vejo ao longe. ele ainda não sabe que está andando em minha direção, já que não me viu. sempre numa andança ligeira, o mundo ao seu redor parece estar em outra velocidade. — pode ser culpa da ansiedade, mas é provável que seja porque conhece o chão que pisa, e até quando não conhece, age como se soubesse. eu tenho essa impressão equivocada de que talvez ele realmente conheça todos os lugares do mundo. — e aí quando me vê, acena. há vezes em que o faço primeiro, mas como gosto de olha-lo, me deixo demorar por um curto instante. 

esse filme eu já vi muitas vezes. guardo centenas de versões, talvez milhares, dessa mesma lembrança, em lugares diferentes, no mesmo ponto de ônibus, no mesmo bebedouro. ele vindo, me notando, acenando, cumprimentando. é muita loucura guardar tanta lembrança, quase que idêntica, da mesma pessoa? 

existe uma sala cheia de arquivos enormes, com gavetas maiores ainda, colecionando retratos, pedaços de lembranças, fragmentos de jeitos e contrastes, dentro de mim. guardando maneiras que ele sorriu quando se jogava no momento, ou em seus silêncios, muitos dos olhares de horizonte, ou até imagens daqueles passos ansiosos. esses sons e recortes, que meus sentidos gravaram, que perpetuam a minha insônia, abrindo e reabrindo caixas, revivem cenas em sépia, como um vídeo caseiro de pixels desbotados, de novo e de novo e de novo. 

colecionar desses fragmentos é uma tarefa que eu já sei de cor. não tão bem armazenadas, tampouco organizadas. algumas cópias foram perdidas e dou graças a qualquer bom deus, que seja. o que eu faço com tanta memória? onde enfio tanto sentimento? não cabe mais aqui. ando transbordando pelas beiradas e ele que está sempre por perto, me vê. o pior é que ele me vê. não é algo que eu tenha controle, se é que me entende. isso de transbordar. isso de me ver.  

sei que a minha mente já deveria ter parado de rodar em sessões de cinema os mesmos filmes, mas o coração é a minha mais pura e teimosa parte. insiste em rever essas cenas que se renovam a cada dia que o vejo acenar pra mim novamente.

enquanto as filmagens acontecem, minha mente é livre e vaga à procura dos melhores ângulos. ele sempre dá um jeito de me dar os melhores. querendo ou não. agradeço por estar presente para vê-los. mas aí ele acena, dessa vez, se afastando pra seguir o próprio caminho. por entre veredas que não posso ver, que não pertenço. as filmagens são interrompidas e uma próxima sessão repetida começa. de novo e de novo e de novo. 

até que é normal quando diretores tem seus atores preferidos, né? 

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